sábado, 9 de abril de 2011

Com licença, homem 'drummondiano'...

Poema de Sete Faces - Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci um anjo torto 
Desses que vive na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
Que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
Não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de peras:
Pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
 
Porém meus olhos 
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
 
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
 
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
 
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
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Com Licença Poética - Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.

Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
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O poema que abre o primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, Poema de Sete Faces, procura mostrar uma visão de poeta sem esperança para o mundo, como a primeira estrofe pode exemplificar com a previsão de que o poeta será um gauche na vida (do francês goshi: esquerdo, torto, desajeitado). Comovido e remoendo fatos e lembranças, Drummond lamenta da falta de amigos, de sua própria fraqueza, e de sua ira quanto a Deus. 
Por outro lado, Adélia Prado, como o próprio nome já anuncia, pede licença para introduzir-se na literatura e utilizar Sete Faces de Drummond para ressaltar o poder do sexo feminino. Ao contrário do eu - lírico do poeta, a autora nos apresenta uma mulher destinada a se destacar, que segue pretextos, mas também inova ao escrever, por mais que esta fosse uma  “[...] espécie ainda envergonhada”. E para deixar ainda mais claro sobre sua força feminina, a poetisa diz que dor não é amargura, uma relação com todas as discriminações que as mulheres sofreram no passado, e que por mais diminuídas, ainda aparecem nos dias atuais. Outra alfinetada no homem de Drummond, que diante dos sofrimentos fica a lamentar-se e a embebedar-se. 
 Apesar da paródia, Adélia também segue seu caminho, criando seu próprio poema a partir de um eu - lírico mais forte que o próprio homem, ela como todas as outras mulheres. Estas que não podem “comover-se como o diabo”, pois tem suas próprias obrigações e dificuldades, e não se derrubam com as amarguras, fundam reinos, inovam, adaptam-se. É como se Prado apresentasse uma nova "opção" de eu-lírico aos poetas: chega de homens coxos, talvez seja o momento de mulheres desdobráveis.
Enfim, o ar pessimista de Drummond, acaba dando lugar a uma idealização da mulher por Adélia. O diálogo, por mais oposto que seja, permanece entre os dois poemas, por mais crítico que um seja ao outro. E, aventurando-se como feminista ao estilo Adélia, podemos dizer que o olhar rancoroso e comovido que os homens ‘drummondianos’ tentam transmitir as mulheres há anos, encontra nesse poema sua resposta: “Mulher é desdobrável. Eu sou”.

Mirella Ghiraldi



3 comentários:

  1. Interessantissímo Mirella. Somente um superlativo assim para dizer o quanto acho pertinente essa sua análise. Foi realmente muito oportuno.
    Entretanto me ficaram umas dúvidas causadas pelo meu desconhecimento de causa.

    Adélia Prado foi contemporânea de Drummond?


    Abraço e parabéns ;)

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  2. Então Che, a Adélia Prado iniciou suas publicações já perto do final da carreira de Drummond, mas sim, eles foram contemporâneos. Tanto que o próprio poeta escreveu: "Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis"

    Ah, e obrigada!

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  3. Demais Mirella. Achei fundamental sua abordagem literária e sua produção escrita em si. Parabéns!

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