Um auto é uma obra de profundo caráter reflexivo que, muitas vezes, entretém o público com uma face cômica e divertida. No entanto, por trás de tudo isso, há sérios valores morais em questão.
Ao fazermos esta breve consideração, colocando de um lado O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente e do outro O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, com adaptação para os cinemas por Guel Arraes, podemos sentir de forma rápida as semelhanças e comparações entre ambos pululando em nossas mentes.
De imediato, claro, temos a questão do julgamento: Na obra de Gil Vicente o inferno é retratado por senão o próprio diabo em sua embarcação, enquanto o céu é representado por um anjo ao comando da barca celestial. Na adaptação de Guel Arraes, temos novamente o próprio demônio convidando os recém-chegados que partam com ele em direção às profundezas, porém a figura do lado divino é Jesus Cristo, que funciona até mesmo como uma espécie de juiz.
Em ambos os casos, grande parte dos “réus”, por assim dizer, julgam-se dignos de fazer a viagem rumo ao plano celeste, contudo, em o Auto da Barca do Inferno, a maioria não consegue evitar o eterno castigo. Já em O Auto da Compadecida, Maria, a mãe de Jesus, também chamada de Nossa Senhora, acaba intervindo pelas almas, tornando-se então a defensora deles. Ótima defensora por sinal, pois acaba – com seus argumentos – salvando todos do fogo eterno, conseguindo-lhes um lugar no purgatório, com exceção da personagem João Grilo, que retorna à sua vida enquanto ser humano aqui na terra.
Dos dois lados temos obras com certo cunho medieval (pois é!), lembrando, é claro, que Gil Vicente é séculos anterior a Ariano Suassuna ou Guel Arraes.
O lado mais interessante das obras é, de fato, a crítica social. Em o Auto da Barca do Inferno essa crítica não é explícita, fica atrás de certo caráter cômico. Em O Auto da Compadecida também, porém a grande diferença é que, ao final da adaptação de Guel Arraes, todos os que estão prestes a morrer, confessam seus pecados e deixam bem claro o lado imoral da situação, cabendo ao espectador apenas associar o fatos à vida cotidiana do ser humano.
Tocando na questão da vida cotidiana do ser humano, é impressionante o poder reflexivo e crítico do Auto – desde que este seja bem elaborado. Infelizmente, nem todos compreendem o que se passa por trás da temática religiosa ou profana, satírica ou não. Alguns acreditam de fato, que o Auto da Barca do Inferno refere-se simplesmente a dois barcos com destinos opostos, e só! A partir de então, levantado este problema e, trazendo-o para o campo dos estudos, ou mais diretamente, para a sala de aula, percebemos que o trabalho com os Autos, como objeto de questionamento dos valores morais e do comportamento da sociedade, como a natural reflexão acerca deles é de suma importância na vida da literatura e do próprio ser humano. A forma com a qual o Auto aborda a Ética – o questionamento da moral – é surpreendente. Excelente meio de fazer pessoas pensarem a respeito da sociedade e da situação na qual vivem, bem como as vidas que levam – ou deixam levar. Poderosa ferramenta para, como diz Jostein Gaarden em “O Mundo de Sofia”, tentar “fazer as pessoas subirem para a ponta dos pelos do coelho, o grande coelho”.
João Cianelli